9.2.16

O consumo (contributos para compreender por que motivo caem as bolsas)

Na Roma do Império chegou-se a um ponto em que o pré dos legionários passou a ser pago com sal (daí "salário"). O sal era um produto de enorme valor relativo porque servia para conservar os alimentos, mas ficava uns furos abaixo da prata, do cobre ou do estanho com que se costumava fazer o dinheiro de uso corrente. Acontece que a entrega de moedas à soldadesca deixou de ser praticável, porque, à falta de produtos para comprar, os homens entesouravam e o metal, essencial para se fazer armamento, acabava enterrado nos quintais sem uso nem proveito.


Com as revoluções industriais, tornou-se possível produzir bens a um ritmo tal que acabou por se democratizar o acesso a produtos de primeira necessidade como alimentos e vestuário. 


Com o tempo, o incrível crescimento de produtividade criado pela mecânica e, mais tarde, pela eletricidade levaram ao surgimento de uma indústria que produzia bens de que a maioria das pessoas nunca pensou que necessitaria. Já no século XX, o jogo entre a oferta (industrial e de serviços) e a procura dos consumidores consolidaria um sistema económico alicerçado numa aparentemente insaciável necessidade de consumo por parte do ser humano, que permitiu a uma minoria lucrar e entesourar, mantendo a maioria satisfeita com bugigangas - o capitalismo. As pessoas procurariam sempre pelas novidades e estariam permanentemente interessadas em fazer um sacrifício adicional para que as pudessem adquirir. Mais horas de trabalho, mesmo que com um salário/hora inferior, para poder comprar as últimas novidades que são produzidas, com dividendos para a minoria, graças a esse mesmo esforço adicional. Nesse sentido, o controlo dos salários, mantendo-os baixos, tornou-se essencial para:
  • impedir o entesouramento;
  • prevenir uma saturação de consumo.
Finalmente, o nascimento da banca e do crédito industrial resolveram o problema de conciliar baixos rendimentos com altos consumos!


Em finais da década de 80, começou no Japão o primeiro grande surto de saturação de consumo. Os japoneses, pura e simplesmente, aborreceram-se de consumir e a grande indústria japonesa, erguida dos destroços da Segunda Grande Guerra, viu-se a braços com um excesso de produção que só conseguia escoar graças ao gosto estrangeiro pela inovação e grande fiabilidade da mercadoria nipónica. Com a queda no consumo, o Japão mergulhou na deflação, que trouxe mais de duas décadas de crise económica de que o país ainda não saiu:


Entretanto, os japoneses começaram a viver de uma forma mais simples, viajaram pelo mundo e entesouraram, emprestando grandes quantidades de capital ao seu próprio estado. O índice da bolsa japonesa passou por um bear market prolongado de que só começou a sair em 2013, graças ao abenomics


Durante muito tempo, os capitalistas ocidentais pensaram que o que aconteceu no Japão tinha raízes culturais e não seria replicável na Europa e, muito menos nos EUA, cujos povos sempre se mostraram arraigadamente consumistas e sedentos de novidades tecnológicas de que nunca haveria carestia. No fundo, tratava-se apenas de conciliar inovação nos produtos com fornecimentos certeiros de crédito, de maneira a manter o rato na roda, o mesmo é dizer-se, o consumidor satisfeito por trocar esforço, trabalho e dores de cabeça por canga de que julga necessitar.


Claro que os nórdicos e os alemães, certamente influenciados por uma formação superior e imbuídos no espírito protestante do rigor e da austeridade, foram os primeiros a cansarem-se do jogo consumista (é por este motivo que os alemães não aceitam subir salários: eles sabem que o efeito prático dessa medida é nulo, porque não é por falta de dinheiro que o povo não compra; é por falta de vontade. Com os tugas será certamente diferente... por enquanto!). Entrar em lojas e comprar caca de que só precisamos porque nos esforçamos para isso, implica uma certa abstração que se evapora quando lemos, viajamos e apreciamos os verdadeiros prazeres da vida! Com ordenados altos e uma vida confortável começaram a entesourar como faziam os legionários romanos. É certo que não enterravam metais no quintal, mas o efeito prático era ainda mais bombástico: não compravam! 

Os alemães, esses, rapidamente perceberam em que buraco se acabariam por enfiar quando o mercado interno colapsasse sob o peso do entesouramento dos seus cidadãos, e tudo fizeram para criar um mercado comum europeu que lhes permitisse:
  • investir o tesouro acumulado;
  • escoar os produtos que produziam.
No final, acabaram inclusive por aceitar trocar a sua grande moeda nacional por uma comum ao mercado europeu que lhes facilitasse as transações e os empréstimos sem estarem permanentemente preocupados com a desvalorização das moedas dos países para onde canalizavam o tesouro acumulado.

O problema da Alemanha (e de outros que tais) é que a tecnologia acabou por evoluir de uma forma tão avassaladora que a produtividade cresceu exponencialmente. Foi evidente como a Mercedes e a BMW, por exemplo, marcas de luxo só acessíveis a alguns, se acabaram por transformar em produtos de uso corrente, pois a necessidade de escoar o produto ao ritmo a que crescia a produtividade obrigou ao sacrifício da exclusividade das marcas. 

Rapidamente, contudo, o mercado único europeu tornou-se exíguo para as necessidades de escoamento alemão (até porque os países que tinham gente disponível para absorver o crescente manancial de novidades esgotaram entretanto o plafond de compras porque se endividaram irremediavelmente) e o sucesso das empresas do país ficou muito dependente de mercados exteriores: dos BRIC e de outros emergentes.

E é aqui que tudo se começa a complicar subitamente em 2014. As sanções à Rússia acabaram com um dos grandes mercados do motor produtor europeu; o esvaziar da bolha das matérias primas, principalmente do petróleo, tirou poder comprador à maioria dos outros mercados e a enorme crise de dívida da China, com uma fuga de capitais em massa de que a valorização aparentemente estranha do euro é um sintoma evidente, ameaça acabar por deixar as fábricas europeias e americanas sem compradores.

E aqui, meus caros amigos, não há BCE que nos valha. O dinheiro que Mário Draghi está a lançar nos mercados, comprando dívida, fica estacionado nos bancos porque não há quem o queira. Tirando Portugal e os restantes europeus do sul e do leste, ninguém na Europa está verdadeiramente interessada em comprar a quinquilharia que os alemães e os grandes produtores europeus produzem, mesmo que lhes ofereçam dinheiro barato. E se os alemães não vendem, têm que reduzir a produção e cortar nos subcontratados. 

Esta crise em que estamos mergulhados é uma crise que mexe fundo com a cartilha capitalista e não é um problema para o qual se tenha uma solução fácil: os países ricos que podem escoar a produção industrial têm populações que não estão interessadas em ir às compras e os países que têm gente com vontade de comprar ou estão afogados em dívida ou mergulhados numa crise de divisas. Sem querer ser dramático, até porque só há verdadeiro dramatismo na morte, começamos a pensar que pode haver profetas da desgraça que têm razão.

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